sábado, 26 de janeiro de 2019

A menina que apagava memórias


A primeira grande guerra havia recém terminado. As cidades ainda estavam sendo reconstruídas. As pessoas, assim como os lugares devastados pelos massacres, estavam aos poucos se recompondo. Muitos haviam enlouquecido depois de perderem muitas famílias. Os soldados que sobreviveram estavam com o corpo fraco, muitos faltando partes, e a mente dominada por terríveis pesadelos. Tudo o que queriam os habitantes de Dreamville, uma cidadezinha devastada nos últimos anos de guerra, era esquecer o passado recente.


Assim como seus colegas, um dos soldados que havia sobrevivido a guerra, vivia se lamentando: "Não sei por que ainda estou vivo. Voltei para a minha cidade e tudo o que me resta é a minha casa. Minha família se foi. Estão todos virados em cinza. Até meu vira-lata", chorava. Mas muitos haviam perdido tudo e portanto ninguém tinha energia para consola-lo, o que queriam era também serem consolados.

Até que, um dia, ao entrar em um mercadinho, Roger cumprimentou a dona do estabelecimento de forma muito diferente. Estava tão animado que saudou até quem ele não conhecia. "Bom dia, dona Maria! O que temos de novidade hoje para o meu almoço?" 

Ela, estranhando, perguntou a ele, se estava tudo bem. "Tudo ótimo, como sempre", respondeu ele. "Minha vida sempre foi um sonho realizado". Sem entender nada, dona Maria comentou: "Que bom que você está superando tão bem os terríveis acontecimentos que atingiram nossa cidade".

O soldado, confuso, perguntou: "Como assim? O que houve com a nossa cidade?", perguntou? A dona do mercado ficou com pena dele. Resolveu apenas responder: "Estou falando de coisas antigas". 

"Ah, sim! Todos gostam de boas histórias antigas. Se eu não tivesse o almoço para fazer, ficaria mais para ouvi-las", disse ele, gentilmente. E saiu cantarolando. As pessoas, ao ouvirem de longe aquele canto, todas estranhavam: afinal, que, estaria tão feliz em uma época como essa, logo depois de tantas perdas, medos e desgraças? Só podia estar louco. Todos os habitantes de DreamVille concluíram: o trauma da guerra fez o homem perder a lucidez.

"Mas bem que eu gostaria de perder a cabeça desse jeito também", pensou em voz alta um pipoqueiro triste que esperava o público na entrada de um circo. O que ele não sabia, é que uma jovem que por ali passava, escutou o comentário. Ela era muito diferente das outras pessoas daquela época. Seus cabelos eram naturalmente azuis e combinavam com seus olhos.  "É pra já!", disse Molly, com um jeito de decidida. Aproximou-se do pipoqueiro e perguntou: "você quer eu apague estas memórias horríveis?" O homem, irritado, respondeu: "Você está debochando de mim, garota de cabelo estranho?".

"Debochando? Claro que não. Eu posso mesmo fazê-lo esquecer de tudo. Todas os traumas poderão ser apagados e você poderá sair cantando pela cidade, assim como aquele homem que eu ajudei", disse. Nesse momento, o homem percebeu que ela devia estar falando a verdade, pois como saberia da mudança do soldado? Então, intrigado, ele perguntou: "Como assim, apagar memórias? Isso é possível? Alguma bruxaria?"

Diante de tantas perguntas, a menina, impaciente, desafiou: "Quer ou não quer?". O homem, curioso e confuso, só respondeu que sim. Nisso, Molly fez um gesto com a mão, posicionando-a na testa do pipoqueiro, que por alguns segundos ficou imóvel como uma estátua. Logo em seguida, ele começou a piscar e, finalmente, abriu os olhos. "Te conheço de algum lugar?", perguntou ele à garota. "Pegue uma pipoca! Todos adoram pipocas em um dia lindo como esse!", completou, sorrindo.

E no dia seguinte, estavam todos comentando a mudança de comportamento do pipoqueiro, que costumava ser ranzinza e assustar as crianças que pareciam felizes demais. "Pode ir arrumar pipoca em outro lugar. Uma moeda não é o suficiente", dizia, quando alguma lhe estendia o dinheiro. Mas no dia anterior, todas as crianças entraram no circo com pipocas na mão, que haviam ganhado do pipoqueiro. Sim, ele havia distribuído saquinhos a todas, fossem ricas ou pobres. 

Muitos diziam que ele, assim como o soldado, havia entrado em uma crise por conta do trauma. "Mas bem que essa crise é melhor que a realidade. Eu também queria ficar maluca assim como eles", comentou com uma cliente a cabeleireira  que havia perdido seu marido, seus irmãos e seus pais na guerra, restando apenas sua filha. Assim que terminou a frase, a jovem de cabelos azuis entrou no salão. "Você gostaria de apagar suas lembranças ruins?", propôs. "Desculpe, garota, hoje não consigo mais atende-la", respondeu a amarga mulher. 

"Estou falando sério", insistiu a jovem. "Eu posso te ajudar". A cabeleireira continuou incrédula e desconfiada. "Se você realmente conseguisse isso, seria muito bom". Assim que pronunciou aquelas palavras, Molly fez um gesto diante do rosto da mulher, que ficou paralisada.

A cliente, que estava ficando impaciente, perguntou se faltava muito para terminar o corte de cabelo. A mulher, como se estivesse acordando de um rápido desmaio, respondeu: "Céus, onde eu estava com cabeça? Estou quase terminando de fazer seu lindo cabelo. Seu corte irá encantar todos dessa bela cidade, cheia de paz e alegria. Como o dia está maravilhoso!".

Em pouco tempo, todos na cidade estavam comentando que a cabeleireira também estava agindo de maneira muito estranha. Mas parecia, assim como os outros dois, mais animada, como se não tivesse nenhum problema. Nenhum parecia se lembrar dos horrores da guerra. Aos poucos, mais pessoa começaram a agir dessa forma. Era como se, aos poucos, todos os traumatizados tivessem amnésia de uma hora para outra. Já começava-se a falar do vírus da amnésia. Mas ninguém jamais desconfiou que se tratava de uma habilidade de uma garota peculiar. Bastava alguém manifestar a vontade de esquecer, que estava ela, pronta para usar seus talentos para ajudar as pessoas.

"Essas pessoas parecem felizes. Será que são mesmo? Será que só eu continuarei sofrendo?", questionou um senhor que havia perdido sua mulher e seu filho na terrível guerra. Assim que terminou de falar, ouviu uma voz de menina: "Com licença, senhor. Gostaria de ter suas memórias apagadas para ser feliz como aquelas pessoas?", perguntou Molly.
"Do que está falando, jovem? Acha que eu poderia simplesmente apagar as memórias?", perguntou. 
"Tenho certeza, eu ajudei tantas pessoas, posso te ajudar também.", disse.
"Você tem alguma relação com essa transformação que está acontecendo com as pessoas da nossa cidade", perguntou ele, muito confuso e intrigado. 

Quando a menina respondeu que tinha esse dom e poderia ajudar as pessoas, viu os olhos daquele idoso se arregalarem em uma expressão que ela jamais poderia descrever. Era de horror, misturado com pena, medo e, ao mesmo tempo, sabedoria e sofrimento. Ele percebeu que as intenções da menina era muito boas. Que ela nem imaginava o poder destrutivo de seu dom. O poder de destruir lembranças.

"Minha pequena. As lembranças podem causar muito sofrimento. Podem provocar saudade e muita dor. Mas são lembranças de pessoas que foram especiais e importantes para a gente. Sem essas lembranças é como se elas morressem outra vez", disse o sábio homem.

"Eu só estou querendo ajudar as pessoas a esquecer as coisas horríveis da guerra. Ninguém quer sofrer", argumentou ela.

"Eu prefiro sofrer que esquecer minha família. Há coisas que são mais importantes que nossa própria felicidade. As lembranças fazem com que eles permaneçam vivos dentro do meu coração. E a guerra não pode ser esquecida. Faz parte da história de cada um, e do nosso povo. Quando apagamos a história, as coisas podem se repetir". 

A menina, envergonhada, concluiu: "Não tinha pensado dessa forma. É como os erros que cometemos. Se esquecêssemos deles, iríamos repeti-los... E agora?  Aquelas pessoas todas esqueceram daqueles que elas amavam. Isso é ainda mais triste que a morte".

Molly não sabia se sua habilidade poderia ser usada para o efeito contrário. Ela nunca precisou reverter um esquecimento. A menina ficou desesperada. Então o senhor teve uma ideia para ajuda-la: "E se mostrássemos a elas as fotos de seus familiares e amigos mortos na guerra?", sugeriu ele.

Assim, os dois foram conversar com cada pessoa que havia sido vítima das habilidades especiais da menina. Pouco a pouco, todos foram relembrando de cada um que havia perdido a vida na terrível guerra. Em meio a choros e muita emoção, as pessoas também sorriam ao lembrar e fazer reviver na memória aqueles que tanto amavam.

E assim, a cidade voltou a ficar triste, mas verdadeira. Pouco a pouco, uns foram ajudando os outros a aliviarem suas dores. Molly também ajudou, mas dessa vez de forma diferente: tornou-se psicóloga, nunca mais usou seus poderes e agora fazia as pessoas ter contato com os seus sentimentos.


9 comentários:

  1. Juju, adorei a história!! Parabéns!!��

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  2. Uauuuuu! Quer dizer que vou ter uma aluna escritora!! Que legal, Júlia! Adorei sua história! 😘 😘

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  3. Que maravilha de texto! Parabéns, vc é muito talentosa!

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  4. Juju que demais!! Vc é minha escritora favorita!!!

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  5. Ju que história mais linda! Um grande aprendizado. Precisamos das memórias, sejam boas ou nem tanto assim, né? Elas fazem parte de nossas vidas. Parabéns minha autora predileta! ��

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